domingo, 3 de fevereiro de 2008

Leão

O que me ocorre, eterno e fiel amigo, é a tua lembrança insepulta por todos esses anos; a tua imagem de guarda, sereno, meigo e atento, ao meu pé, como uma esfinge que vigia o tempo. Como uma flecha, tu disparavas mata a dentro, tangendo o gado e as criações junto com a voz vaqueira do meu avô. Tu eras preciso, conhecias todos os ângulos da mata fechada. Incansável, diuturno, tu não querias nada em troca, senão o alimento em sobras e um pouco de atenção e carinho, que te era um luxo. Recordo que curvavas ante as grosserias imerecidas, mas a tua inação era antes humildade servil que covardia. Quantas vezes teus olhos não denunciaram fome e o teu corpo trêmulo, o frio. Mas com fome e frio, esquecido, muitas vezes tu atravessavas as noites sem abrigo digno, fora de casa e, não obstante, amanhecias antes do sol e dos pássaros, feliz apesar de tudo, pulando, querendo carinho, mesmo que em migalhas. Nunca deixaste de resistir a um assovio, oportunidade com que te apresentavas rápido e como que lépido, balançando graciosamente o rabo, que nunca vi colocares entre as pernas. Nem nunca refratário fostes a uma voz de comando. Nunca hei de olvidar quando a tua valentia afugentou os dois bois bravos que nos estranharam perto das Casas de Telha, tu sozinho contra chifres afiados, saístes vencedor. Soube, entre lágrimas, da tua morte, tu já velhinho, sem possibilidade de defesa, diante da arma mortal, que te cravejou de chumbo. Tu não esperavas aquilo, após tanta fidelidade. Mas enquanto eu for vivo, tu viverás através da minha lembrança, feliz, alegre e risonho, como nos tempos idos.

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