quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

A Pracinha

E a noite já tinha aberto suas portas, desnudando uma profunda escuridão ponteada de estrelas lívidas sobre nós. Escapada do norte, uma brisa brincava com as folhas das árvores. Não me assoma à lembrança a imagem da lua... Talvez ela estivesse minguada na imensidão celeste, naquela noite fresca. As pessoas passeavam suas vidas pela pracinha. Algumas, em pé, trocavam a vida em palavras; outras, sentadas, pareciam contemplar sem querer o infinito, como uma forma de se submeterem, silentes, à passagem inexorável do tempo. Naquela pracinha, onde o verde festejava nos canteiros e as flores sorriam espargindo em generosa doação os seus perfumes, as luzes dos postes deitavam suas mansas claridades sobre as pessoas. Um jovem, uma criança e uma senhora (que já havia vivido mais que todos ali as alegrias e os destemperos que o destino outorgara) figuravam suas presenças num dos banquinhos de pedra da pracinha. As palavras iam e vinham entre eles, levando temas que o tempo já furtou da lembrança, enquanto o vigia do lugar parecia descansar mais que todos nós. Ali se amalgamavam três idades diferentes, três fontes de anseios, dúvidas, sonhos e esperanças diferentes, três universos que se juntavam por liames de afeto mútuo. Talvez, enquanto estivessem ali, o destino, alhures, tantas vezes caprichoso, tecia, engenhoso, alguns lances vindouros de suas vidas, os quais jamais poderiam supor com precisão. Por que estavam ali? O que faziam ali? Onde estariam amanhã ou uma década depois? Naquele momento, esses questionamentos – a nutrição basilar de plurais correntes filosóficas, por todos os tempos – não importavam para eles e nem sequer tangenciavam o corpo abstrato de suas mentes. Simplesmente absorviam o presente, enxergando e vivendo apenas os seus aspectos comuns, como o faziam todos os que ali se achavam. Na verdade, hoje sei que aquelas três vidas estavam alheias ao fato de que aquela pracinha, naquela noite, bonita e inolvidável, compunha um dos espaços da caverna em que vivemos todos.


02.12.2009

sábado, 11 de julho de 2009

Reminiscências - Parte II

A lua deitava suas claridades opalinas sobre as matas naquela noite fria. Um grande alvoroço se havia formado na Casa Grande. A cabeça do petiz ainda não era capaz de alcançar o entendimento das motivações daquela enorme confusão, em que as agitações dos envolvidos e os seus gritos estrangulavam a serenidade da noite. Via-se no meio daquele tumulto como no olho de um ciclone: absolutamente perdido, entre as voltas que davam em torno dele e que ele dava em torno dos outros, sentindo uma forte incomprrensão diante da sequência daqueles acontecimentos horríveis, que lhe imprimiam uma angústia muito gravosa no mais íntimo do seu ser, agitando-lhe os sentimentos.

De chofre, o eixo daquele turbilhão de desentendimentos deslocou-se para fora da Casa Grande e tomou o rumo de um leito de areia ladeado por matas densas. O pai do petiz, cujo comportamento anormal dava mote a toda aquela situação, parecia incontrolável. Percebia-se inequivocamente a extravasão de seus sentimentos, principalmente a raiva, que mais o assemelhava a um insano, cujas ações denotavam a ausência de pudor e respeito pela presença dos filhos e de algumas outras pessoas que assistiam aquele espetáculo lastimável absortos e quase que sem acreditar naquilo que suas vistas e ouvidos registravam naqueles momentos.

O petiz também tomou o rumo do leito de areia, como que arrastado pela força dos fatos que sucediam naquele transe tormentoso de que era uma das vítimas. Vamos encontrá-lo entre seu pai e sua mãe, que vinham um de encontro ao outro, como que se preparando para um choque cujas consequências seriam imprevisíveis. Virou-se instantaneamente de encontro ao pai, estendendo os braços como um reflexo natural de quem sabe inevitável um choque, na derrdeira tentativa de defender-se e como a comunicar seu desejo desesperado de que o pai cessasse a sua fúria desenbestada. Quando deu por si, o lance já o havia atropelado. Estava ao chão. O rosto colado na areia fria, fria, que contrastava com o ardor que lhe corria na maçã do rosto atingida por um tapa covarde. Não se ergueu logo. Parecia compartilhar com a terra aquela angústia que lhe permeava cada poro da alma já combalida pela dor dos fatos que ali transcorriam amargamente; parecia, descrer que tudo aquilo pudesse estar sucedendo. A areia sorvia as lágrimas que lhe desciam do rosto contraído de medo. Permanecia no chão e dele percebia que pequenas luzes brilhavam na Casa Grande, do pavio das lamparinas que estavam acesas, como as atenções de todos naquela noite.

A partir daquele momento tudo pareceu acalmar-se mais. Voltou para casa sentindo o peso enorme da vida sobre seus ombros infantis.

segunda-feira, 6 de julho de 2009

Reminiscências - Parte I

Aquela pergunta distoou absolutamente dos propósitos do jantar. E não apenas porque trazia na sua vibração toda a intensidade de um questionamento inesperado. Foi feita com coragem, de chofre, olhos nos olhos e comunicava um sentimento de incompreensão com um estado de coisas que poderia ser totalmente diferente. Comunicava também ternura e inocência.
A fisionomia do interlocutor repercutiu todo o espanto provocado pela indagação. Buscava ele um local com os olhos, de soslaio, mas não o encontrava. Ele nunca olhava nos olhos de ninguém nos momentos decisivos. Buscava sempre evadir-se, para não confrontar-se com os problemas mais delicados e substanciais, de sua responsabilidade direta.
- Por que o senhor faz isso com a gente? Balbuciou a criança, movida pelo sentimento de sua causa, a qual compartilhava com sua mãe e seus dois irmãos. A mãe não se encontrava no recinto enquanto os dois irmãos sim e os mesmos pareciam indiferentes àquela pergunta, enquanto estavam à mesa. O jovem senhor não soube e nem pôde responder. Houvera sido impactado, nunca supunha que seu filho varão fosse lhe surpreender ali, naquela noite, acomodado diante daquela mesa como tantas outras vezes havia acontecido.
Sua resposta foi o silêncio, mas um silêncio conturbado, como se evidenciava na sua inquietude indisfarcável, manifesta em seus olhos intranquilos nas órbitas e em cada músculo palpitante do seu rosto, que empalidecera. O garoto não era capaz de imaginar que o silêncio que obtivera como resposta à sua pergunta iria simbolizar o primeiros de muitos, que marcaria o modo de agir de seu pai durante muitos anos.

quarta-feira, 6 de maio de 2009

Tempo

Veículo
indomável

Que nos assentos
conduz

A realidade
Que envelhece
(Ou se renova?)

Tempo que traz
E persegue o futuro...
Entre o passado, que suscita as nossas lembranças, e o futuro, onde depositamos as nossas esperanças, está o presente, onde se encontra o nosso dever.

segunda-feira, 27 de abril de 2009

Riachinho

Passeio de água
Bebendo o verde,
Água chiando
Beijada de sol
A gente banhando
Um bando menino
Um banho menino
No tempo que nem passava
Naquela alegria,
Naquela graça,
Onde a corrente das águas
Nos mantinha cativos
De tantos carinhos
Pelo riachinho.

08.11.2008

quarta-feira, 8 de abril de 2009

...
Eu quero tomar jeito
E fazer o que tem que ser feito
Sem eterna demora.
Eu quero sair desse transe
E remover as núvens de chumbo
Dos meus olhos
E fitar e fazer o meu caminho
Por todos os dias que me restam
Com o melhor que posso fazer
E que há de ser.
Não estou além
Estou precisamente aqui
Dentro mim
Perdido tentando se encontrar
Comigo e com o mundo.
...

O roubo na sala ao lado

- A resposta correta, então, está na letra "a". Marquem, portanto, a letra "a".

De repente, a coordenadora da escola, pessoa muito serena, chega até a porta da sala de aula. O relógio acusava um horário em torno das 21h.

- Professor, com licença... por favor, venha cá um minuto. Acabou de haver um assalto na sala ao lado, o bandido acabou de fugir levando um aparelho celular de uma aluna. Recomendo que o senhor encerre a aula por hoje, pois é perigoso permanecer aqui. Peça aos alunos que saiam calmamente.

O término da resolução de questões sobre os primeiros anos da República brasileira e a Primeira Guerra Mundial ficava para depois. Não podia ser de outra forma pois não havia como não aceder àquela prudente recomendação.

- A correção terminou por hoje, por motivo de força maior. Recolham suas coisas, a aula está encerrada. Vamos sair calmamente.

- Meu Deus, já assaltaram a escola de novo! Disparou um aluno que estava sentado nos fundos da sala.

Não houve alvoroço e nem pressa, como se aquilo que tinha acabado de acontecer na sala ao lado fizesse parte da rotina da escola e fosse, por isso mesmo, algo próximo do normal.

Deixei a sala de aula por último, para resguardar a segurança dos meus alunos da 3ª série do Ensino Médio, em caso de alguma nova e indesejada investida criminosa.

Enquanto me dirigia para a sala da direção, fitei atentamente um matagal escuro que ladeia toda a extensão do corredor que dá acesso as salas de aula. O único movimento era o dos galhos que balançavam ao sabor de uma fresca brisa noturna. Havia silêncio e o ambiente demorava impregnado de um clima pesado, típico dos lugares que deixam vestígios de crimes.

Sentada em uma das cadeiras da direção, com um copo dentre as mãos, uma moça tentava se recompor do susto que houvera passado minutos antes, rendida, com a ponta de uma faca tocando o seu pescoço, enquanto o professor que estava com a turma no momento do ocorrido narrava, com pormenores, o fato lamentável.

Eis que acodem os policiais do Pelotão Escolar e, em seguida, o pessoal das Rondas Ostensivas de Natureza Especial - RONE que, após colherem as informações devidas e repassarem as orientações necessárias às vitimas, demandam à captura do assaltante, que houvera roubado um celular e a carteira com dinheiro e documentos do professor.

Foi inevitável pensar: "e se tivesse sido na minha sala, durante a minha aula?". Esperaria ter a mesma "sorte" que teve o professor, a aluna e os demais estdantes, que restaram ilesos diante de um criminoso audacioso e aparetemente sobre o efeito de drogas. Ele não mostrava seu rosto, que estava coberto com uma camisa, deixando apenas entrever seu olhar tresloucado, vermelho, perverso... E por falar em corir o rosto, a certeza da impunidade é tão animadora a ponto de desinibir esses indivíduos fora da lei quanto a adoção de uma cautela tradicionalmente protocolar entre os bandidos: o de eclipsar a face.
É desanimadora a constatação de que, nos dias hodiernos, é a Justiça inócua quanto a sua missão de fazer cair a máscara desses bandidos: eles mesmo a tiram, atiram, ferem, derramam sangue inocente, deixam órfãos e viúvas ao desamparo. Enquanto os bandidos mostram a cara por aí, a Justiça - e quero aqui me referir mais aos legisladores do que aos julgadores, porque aqueles é que dão as diretrizes da atuação destes - teima em manter-se vendada, escondendo o seu rosto, os seus olhos de um problema gravíssimo com que todos nós já estamos cansados de nos deparar e que exige soluções sérias, eficazes e inadiáveis, porque não estamos seguros em lugar nenhum...

terça-feira, 10 de março de 2009