19/4/2006 - João Ubaldo Ribeiro
Essa síndrome da terceira pessoa talvez fosse fenômeno merecedor de um estudo sociológico, com perdão da má palavra. Nunca somos nós, sempre são eles. E isso acontece das formas mais surpreendentes. Já saí andando com um amigo ou outro, para pegar o carro dele e nos queixando o tempo todo do comportamento dos motoristas que se julgam, por exemplo, no direito de atropelar quem quer que atravesse a rua com o sinal fechado ou cometa o que ele considere uma imprudência. O amigo diz o diabo dos motoristas até entrar no carro, ocasião em que, instantaneamente, os pedestres deixam de ser nós para serem eles. E, ao volante, faz tudo o que acabava de condenar com tanta veemência. Da mesma forma se comporta quem, quando é cliente, é tratada aos pontapés, e quando é servidor, também trata o cliente aos pontapés.
Com a polícia, o comportamento não é diverso. A polícia são "eles", nunca nós. Não são homens e mulheres nascidos e criados da mesma maneira que outros brasileiros, são "eles". Claro que nunca defendi (e, aliás, não estou defendendo nada, são somente uns pontos de vista que quero expor) a brutalidade, a ineficiência ou a corrupção na polícia, nem tampouco encaro os marginais como gente fina que esta vida cruel levou ao crime, enquanto ignoro as mortes, o sacrifício e o heroísmo de muitos policiais - prática, infelizmente comum, na imprensa e em certos grupos de opinião.
Nos últimos dias, tem havido uma cobertura intensiva do crescente número de policiais mortos simplesmente porque carregam uma carteira funcional, ou vestem um uniforme. Foi polícia, tiro nele. E, porque são "eles", encaramos suas mortes como algo alheio a nós e já ouvi até gente discursando para que se aja assim, porque afinal "essa polícia merece mesmo isso", é o troco que está recebendo por não servir bem ou maltratar o cidadão.
Fico imaginando a vida de um policial honesto e, com toda a certeza, independentemente de alguma vocação, não a quereria para mim ou para ninguém em cujo destino pudesse influenciar. Agora policiais, mal pagos, mal preparados e vergonhosamente equipados convivem, ainda por cima, com a condenação à morte a que estão sujeitos, simplesmente por exercerem a profissão. E não só a condenação deles mesmos, mas também de suas famílias, da mulher aos filhos de colo. Vários deles, num ato impensável em qualquer país civilizado, mandam tirar carteiras de alguma outra profissão, para carregá-las nos bolsos quando estão de folga e assim escapar da "vingança" dos marginais. Outros escondem dos vizinhos e dos próprios filhos sua condição de policial.
E, ao que tudo indica, estamos achando isso tudo normal. Policial é policial, não só "ganha pra isso" como não é gente como nós, não tem medo, não tem fraquezas, não é sujeito a inveja, ressentimento, frustração, neurose ou até estresse. Executivo de multinacional tem estresse, dona-de-casa tem estresse, jornalista tem estresse, mas policial não, é moleza subir morro enfrentando armas de última geração e a hostilidade dos que sofrem com isso. Naturalmente, nada justifica atrocidades, brutalidade, venalidade, cumplicidade com criminosos - o que muitos policiais praticam e continuam praticando. Mas, se está muito longe de justificar, está muitíssimo perto de explicar.
Que queremos na polícia? Santos? No País em que vivemos, somente santos com vocação ao martírio seriam os policiais que desejamos. Temos o direito de querer contar com uma polícia eficiente, atuante e respeitada pela comunidade, assim como temos o direito de exigir (apesar de nunca obtermos) mais ou menos as mesmas coisas de todas as autoridades. Hoje em dia, um policial manda um carro encostar a fim de que alguma suspeita seja verificada e é logo recebido à bala. No entanto, se se aproximasse de nosso carro um policial já de arma na mão, abriríamos um berreiro no jornal, pois cidadão não é criminoso presumido, para ser abordado por um policial de arma em punho.
Verdade, mas que faríamos, no lugar desse policial? Pimenta no dos outros é sempre refresco e conheço gente que responderia - e o que é pior, sinceramente - que, se fosse policial, se comportaria como os americanos dos seriados de tevê. (Descubra o que acontece a um "cop killer", matador de policiais, em Nova Iorque e sua opinião seria um pouco abalada).
Ouso discordar. A maioria de nós que fosse levada à condição de policial agiria até bem pior do que aqueles que critica. Bastariam uns meses, ou nem tanto, convivendo com a corrupção, que vem de cima e de todos os lados, a iniqüidade, a desonestidade de parceiros, a grana curta, a execração da imprensa e do público (e quem é o primeiro a oferecer uma cervejinha ao guarda de trânsito, para ele esquecer a infração, não somos nós? quem chegou primeiro, o ovo ou a galinha?), o medo de morrer ou encontrar a família morta e tanta nojeira e pavor em que o policial é obrigado a chafurdar.
Mas não, nós queremos santos, iguais a nós, povo pacífico, cordato, incorruptível e respeitador da lei. Não temos um plano de segurança pública merecedor desse nome, negligenciamos a polícia, de que só lembramos para criticar, queremos que ela se lixe e também queremos que, em troca disso, seja exemplar. Quer dizer, queremos santidade. Não me considero exceção pessoal. Também tenho medo da polícia e também me horrorizo com muito do que ela faz. Acho que temos uma polícia que pode ser qualificada de ruim ou péssima. Mas também não acho que melhor qualificativo pode ser dado a nós como um todo, com a possível exceção de alguns padres, frades, freiras, pastores ou rabinos.
Chato lembrar, mas a nossa polícia também somos nós, não foi o Diabo que a criou; fomos e continuamos sendo nós.